A hora é de recrudescer a resistência e fortalecer as formas de luta que já estão em processo de organização nos municípios e estados
Sem democracia, não existe política pública de saúde mental. Estamos vivendo certamente o momento mais difícil da reforma psiquiátrica e da luta pela utopia de uma sociedade sem manicômios.
Precisamos analisar a gravidade do momento, conhecer mais profundamente as razões que levaram nosso país à situação de ruptura com o Estado Democrático de Direito e de desconstrução acelerada das políticas sociais e da autonomia nacional, para elaborarmos coletivamente as estratégias da nossa resistência. Para isso, é preciso construir formas de intenso e aberto diálogo entre nós. Necessitamos urgentemente compartilhar nossas visões diferentes sobre a grave crise política brasileira, para podermos caminhar unidos neste momento crucial da nossa luta.
Com o ‘Fora Valencius’, que aconteceu há apenas um ano atrás, ficou mais uma vez comprovado o grande poder de mobilização dos movimentos sociais do campo da saúde mental. A união de várias gerações de trabalhadores, professores, pesquisadores, gestores, estudantes, usuários e familiares, afirmando com vigor que o campo da saúde mental não aceitava a indicação de um coordenador que ostentava em sua biografia a direção do maior manicômio privado do Brasil, propiciou uma mobilização memorável, que atestou nossa força diante do Ministério da Saúde do governo anterior.
Nosso movimento, desde os anos 90 do século passado, é um dos mais fortes movimentos sociais surgidos no processo de redemocratização do Brasil. Quem afirma isso não somos nós, do mundo psi, mas companheiros de outras lutas, como os da reforma sanitária, dos trabalhadores sem terra, dos direitos humanos, dos direitos de crianças e adolescentes, dos direitos da mulher, em declarações que são endossadas por inúmeras análises de estudiosos do campo da política e das ciências sociais. Nosso movimento tem uma imensa base social, e está construído sobre premissas éticas sólidas, das quais nos orgulhamos: a cidadania do chamado louco, a construção compartilhada da autonomia, o respeito às diferenças na escolha dos modos de andar a vida, o direito ao cuidado em saúde e saúde mental como dever do Estado, a mudança dos paradigmas conceituais que durante dois séculos sustentaram a psiquiatria manicomial.
Aprovamos uma lei nacional, a lei 10.216/2001, pela qual lutamos durante 12 anos. Ajudamos a construir uma conferência nacional de saúde mental, em 1992, na qual pela primeira vez usuários e familiares atuaram como delegados, com o mesmo estatuto formal de profissionais e representantes da sociedade civil, e desde então as conferências seguintes, de 2001 e 2010, ampliaram a participação política de usuários e familiares, que tiveram atuação decisiva em 2009, na Marcha de Usuários e Familiares a Brasília, para garantia da IV CNSM/2010. Nosso movimento apoiou a construção do SUS, e participou do esforço pela aprovação do Estatuto da Criança e Adolescente e das lutas pela implementação dos direitos sociais definidos pela Constituição Cidadã de 1988.
Durante os governos democráticos e populares de 2003 a 2015, a política de saúde mental aprofundou os avanços dos anos 90, ampliou em escala inédita os serviços abertos e substitutivos, de base territorial, e reduziu significativamente os equipamentos de tipo manicomial. Tivemos imensas dificuldades, é verdade, especialmente na área de álcool e outras drogas, onde predomina na sociedade e nos agentes políticos uma visão extremamente conservadora e autoritária sobre a melhor forma de lidar com este problema de saúde pública. Mas estávamos em pleno processo de implantação de uma reforma psiquiátrica, no contexto do SUS, que incorporava as premissas da utopia ativa da sociedade sem manicômios. Todos conhecem os números: redução de leitos em hospital psiquiátrico, implantação de CAPS e residências terapêuticas, CAPS AD e infanto-juvenil, unidades de acolhimento e consultório de rua, Programa de Volta para Casa, programas de geração de renda em articulação com a economia solidária e com arte e cultura, programas de formação permanente, ações desenvolvidas na atenção básica. Um avanço reconhecido em todo o mundo!
Portanto, quando o novo governo ilegítimo, através de um Ministro da Saúde que nunca lidou com questões de saúde pública, mas sempre esteve ligado aos interesses do poderoso setor econômico dos planos de saúde, nomeia um novo coordenador para a saúde mental, é ingênuo e ilusório pensar que combateremos este contexto político com os mesmos argumentos do ‘Fora Valencius’. O cenário atual é muito mais aterrador. Exigirá de nós clareza de análise e posições corajosas sobre a questão democrática.
Vivemos um estado de exceção. Desde maio de 2016, uma coalização antidemocrática se apossou do poder. Esta coalização é formada por:
I) grupos econômicos liderados pelo setor financeiro e industrial (FEBRABAN, FIESP), especialmente com base em São Paulo e no Sul-Sudeste, que já haviam sustentado e participado da ditadura civil-militar de 1964-1986;
II) políticos de partidos fisiológicos, liderados pelo PMDB, de onde saiu o presidente ilegítimo, e partidos da direita e extrema-direita, como PSDB, DEM e PPS (que produzem fato inédito na história democrática: 88% dos deputados e senadores aprovam todas as matérias enviadas ao Congresso pelo governo ilegítimo de Temer, o qual, paradoxalmente, é rejeitado pela ampla maioria da população, segundo as pesquisas);
III) o judiciário e o ministério público, que estabeleceram um dispositivo penal de exceção, junto com a Polícia Federal, dispositivo que, sob o argumento do combate à corrupção, sustenta um processo de terrorismo de Estado, submetendo partidos políticos e a sociedade a uma situação de suspensão das garantias individuais próprias do estado de direito;
IV) mídia que apoia e participa do golpe, liderada pelo grupo Globo, que produz uma narrativa diária, por televisão aberta, televisão a cabo, rádios, jornais e internet, induzindo o ódio de classe, o estigma à política, e uma compreensão dos conflitos baseada na intolerância e no ódio à esquerda e aos partidos de esquerda, sempre descritos como “corruptos”;
V) articulações internacionais do dispositivo penal de exceção com o governo e empresas norte-americanas, especialmente do setor de petróleo, que já conseguiram desmantelar o controle da Petrobrás sobre o pré-sal, e avançam na meta de desarticular a participação do Brasil na cooperação Sul-Sul, especialmente através dos BRICS – grupo de países que buscam construir uma alternativa à hegemonia econômica e política dos Estados Unidos. Impôs-se ao país, pela força, uma agenda neoliberal, de restrição de direitos sociais (previdência, saúde, legislação trabalhista, educação, moradia, renda) e de desnacionalização da economia, agenda que havia sido repetidamente rejeitada pela população em todas as eleições majoritárias desde 2002. Ampliam-se as manifestações oriundas de grupos de extrema direita, com pensamentos e ações de natureza fascista, que buscam eliminar a diversidade e pluralidade próprias das sociedades democráticas.
O estado de exceção está instalado desde maio de 2016, e já existem resultados visíveis. No setor do petróleo, o desemprego vai transformando cidades como Macaé, Itaboraí, e municípios da Bahia e Pernambuco em cidades-fantasmas. O desemprego formal (número de pessoas que buscaram ocupação no último mês, segundo o IBGE) atinge 14 milhões de brasileiros. As grandes empresas de construção, com presença na África e América Latina, estão sendo desmanteladas, em ações de destruição ilegais e jamais realizadas em outras iniciativas conhecidas de combate à corrupção, como a Mãos Limpas, da Itália, ou em processos judiciais realizados no cenário do grande capitalismo norte-americano e europeu, onde a eventual punição de dirigentes não levou à destruição de empresas e desemprego em massa.
Esta coalização antidemocrática está, em passos acelerados, destruindo a previdência social, desarticulando o SUS, ameaçando as universidades públicas, desfazendo direitos históricos da classe trabalhadora, como a CLT, impondo uma política de educação básica de feição fascista, disseminando o ódio contra a política e as minorias, e criminalizando os movimentos sociais. O contexto é de violência e medo. Que fique claro ao governo ilegítimo de Temer, e ao ministro dos planos de saúde: o movimento da saúde mental é forte e está organizando sua resistência.
Este é um manifesto iniciado por um grupo de militantes da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, que estão juntos desde o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental do final dos anos 70 e anos 80, desde o Congresso de Bauru, que adotou o lema da Sociedade Sem Manicômios, desde a luta pela lei antimanicomial nos anos 90, desde a construção das primeiras experiências municipais de cuidado em liberdade, e que participaram da implantação em escala nacional da rede de atenção psicossocial dos anos 2000 até 2015.
A hora é de recrudescer a resistência e fortalecer as formas de luta que já estão em processo de organização nos municípios e estados. Convocamos todos os companheiros da nossa luta para um grande encontro nacional para traçarmos estratégias de combate contra o estado de exceção e em defesa da reforma psiquiátrica, da luta antimanicomial, do SUS e dos direitos sociais já conquistados.
De vários lugares do Brasil, em 05 de março de 2017.
A FENAPSI, o Instituto Silvia Lane, dentre diversas entidades de todo o Brasil, assinam, apoiam e divulgam este manifesto. Compartilhe!